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Canção da chuva

Pinga, pinga, pingo d’água,
Chuva bate na calçada.
Pinga, pinga, pingo d’água,
Os meninos dão risada.

Pinga, pinga, tanta chuva
Caindo forte sobre mim,
Meu olhar agora turva
Nessa chuva já sem fim.

N’água vou lavando tudo
Que um dia sujou-me inteiro.
Hoje pouco importa o mundo
Que se afoga nesse agueiro.

Pinga, pinga, pingo d’água,
Pinga, pinga, tanta chuva,
Tanto bate, tanto turva,
Quanto míngua minha mágoa.

Se tivesse soluções para tudo não seria poeta, seria político ou advogado.

Paciência

Ao amigo Marcos de Sá

Quando se adormece
E ainda assim a dor não passa
E as aspirinas já não curam
E o último bar fechou há alguns minutos
E já se foi a hora de partir dessa vida
E a noite tarda a findar
E o dia demora a nascer
E uns meses foram perdidos no emprego errado
E uns anos foram jogados em um plano fajuto

E se finalmente despertar
Os olhos acesos como faróis
Irão encontrar todo o tempo perdido
Apenas esperando para recomeçar

Náusea

Quando me perguntam
de onde vem meus poemas,
Não penso duas vezes.
Vem sempre de uma dor forte no estômago,

Maldita náusea.

Quanto mais dói
Na crescente ânsia do vômito,
Quanto mais os olhos escurecem
Próximos do desmaio,
Quanto mais as vísceras fervilham,
Mais a poesia se aproxima do nascimento.

Não está tudo bem.
Nunca esteve,
Porque se assim estivesse
Não haveria poesia.

Religiosidade e arte

 Deus triste

Deus é triste.

Domingo descobri que Deus é triste
pela semana afora e além do tempo.

A solidão de Deus é incomparável.
Deus não está diante de Deus.
Está sempre em si mesmo e cobre tudo
tristinfinitamente.
A tristeza de Deus é como Deus: eterna.

Deus criou triste.
Outra fonte não tem a tristeza do homem.

(Carlos Drummond de Andrade)

            A inconstância é um direito de todo homem, inúmeros poetas do século XX foram comunistas durante a juventude, anos depois se desligaram dessas convicções. O poeta tem como virtude central essa constante mudança de opinião, a possibilidade de opinar, sem que essa seja sua opinião particular.
            Levanto a partir disto uma questão interessante, sendo a fé, um dos muitos sentimentos desenvolvidos pelo homem, por que estaria ela isenta dessa possibilidade de mudança constante? E seria dado apenas ao poeta esse direito de mover sua opinião conforme os ventos que sopram em sua cabeça? 

As ligações entre os autores e sua religiosidade são mais úteis em campanhas publicitárias do que de fato influenciam em sua obra. Parece ser prazeroso a um grupo de ateus afirmar que X e Y não acreditavam em Deus, assim como para certos religiosos é quase um prazer sexual afirmar que X e Y eram fiéis seguidores, ou melhor ainda, que um dia foram ateus, mas se converteram por temerem os castigos divinos.

Pois bem, a intenção desse post não é afrontar a religiosidade de ninguém. Quero apenas perguntar, seria o poeta um ser sem identidade? Já que apresenta sempre essa mudança de opiniões em seus textos, uma hora Deus morreu, outra hora pede resignação. Seria a fé um sentimento incogitável, imutável? Então por que o mesmo não funciona com o amor, com a felicidade, com a saudade, já que para todos eles permitimos essa constante metamorfose. Em um segundo Maria deixa de ser a mulher amada e passa a ser uma infiel, dias depois retoma a seu posto de musa inspiradora.

As Litanias de Satã

“~*~

Oração

Glória e louvor a ti, Satã, nas amplidões
Do céu, em que reinaste, e nas escuridões
Do inferno, em que, vencido, sonhas com prudência!
Deixa que eu, junto a ti sob a Árvore da Ciência,
Repouse, na hora em que, sobre a fronte, hás de ver
Seus ramos como um Templo novo se estender! “

(Charles Baudelaire, As Flores do Mal, Trecho)

            Seria a fé um sentimento que acorrenta o homem? Então por que o poeta nunca se encontra preso a esses grilhões?

Eu passarinho

                                                                           Ao Mario Quintana

O Mario era um importante espião universal,
Porque todos seus poemas
São uma espécie de relatório
De nossa vidas.

Existe algum tipo de pré-disposição, dom ou aptidão natural? Será que o ser humano já nasce predestinado a exercer determinada função com maior habilidade do que outra? Teriam homens como Lampião e Al Capone nascido para o crime? Tendo em vista que foram bem sucedidos em suas vidas desregradas demonstrando interesse e até gosto pela violência.

            Você sabia que até a década de 60 as gramáticas vinham com capítulos dedicados à versificação? E que o estudo da poesia era obrigatório, pois pertencia a grade curricular do ensino fundamental? Graças principalmente ao modernismo e suas novas visões de poesia, o ensino em escolas caiu no desuso, já que os poemas não continham mais metrificação, rimas, nem ritmo como em outrora.

            A maior parte dos grandes poetas de nossa literatura conheceu a poesia na escola, chega a ser curioso imaginar Castro Alves ou Mario Quintana, levando para casa o exercício da aula de gramática e literatura, que deveria ser, compor um poema e fazer o estudo de outros tantos como a professora recomendou.       

            Penso que o estímulo durante a infância e a adolescência são o que geram essa personalidade íntima entre uma pessoa e uma determinada área, aliás, não apenas durante a juventude, quantas pessoas já após o amadurecimento conseguem descobrir algo com o que realmente se identificam? Trazendo para poesia, existiriam de fato pessoas naturalmente poéticas? Crianças que já nasceram com os versos pulsando em seus pensamentos? Acredito que não.  

Belo Belo

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo – que foi? passou – de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

– Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

(Manoel Bandeira, Belo Belo)

            Hoje temos um número enorme de pessoas que “escrevem” poesia, basta você fazer uma pesquisa rápida no Google para comprovar, uma infinidade de blogs sobre o assunto surgem todos os dias, ai vem uma pergunta interessante, seria isso uma febre de “aptidão”?
            O gosto pela escrita é suficiente para definir alguém como poeta? Sei que a versificação caiu em desuso, mas ainda assim ela é um ponto de referência para o conhecimento da arte poética, assim como estudar a evolução dos pensamentos dos poetas e as formas de composição. Pode alguém ser médico sem conhecer a composição e utilidade dos medicamentos que irá receitar?   

Meus Oito Anos

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

(Casimiro de Abreu, As Primaveras, Trecho)

            Acredito que quando alguém fala em dom natural, está com isso apenas inflando seu ego, é como afirmar que nasceu com uma espécie de estrela sobre sua cabeça. Como sempre quero ressaltar que o tema do blog é poesia, por isso não vou entrar em outras áreas da arte, que de certa forma até permitem alguns enigmas quanto à genialidade de seus artistas. Pergunto-me se muitas vezes se o leitor não esquece de observar o poder da mídia sobre seu artista, o poder da fama, suponhamos que Drummond escrevesse um poema de qualidade inferior a sua obra, será que alguém levantaria o dedo e questionaria a qualidade, como o faria com um autor desconhecido?  

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade)

            Fico no aguardo da opinião do leitor. 

Toma juízo

Estive perto de estar certo,
Mas por sorte
Não foi dessa vez.
Não quero os estigmas da verdade em mim,
Nem as soluções para o mundo.
Quero apenas interpretar
Todas as histórias abstratas
Que contam sobre nós e o que sentimos.

Amarelo manga

Tempo Amarelo

Amarelo é a cor das mesas,
dos bancos,
dos tambores,
dos cabos,
das peixeiras,
da enxada
e da estrovenga.

Do carro de boi,
das cangas,
dos chapéus envelhecidos.
Da charque!

Amarelo das doenças,
das remelas,
dos olhos dos meninos,
das feridas purulentas,
dos escarros,
das verminoses,
das hepatites,
das diarréias,
dos dentes apodrecidos…

Tempo interior amarelo.
Velho, desbotado, doente.

(Renato Carneiro Campos)

 

   Algo de repulsivo habita todos os homens. Quando o mesmo recebe educação, interage com a cultura e com outros meios de sociabilização, consegue assim dominar a perversidade que reside em sua essência. Alguns poetas trazem esse lado obscuro como ferramenta central de sua poesia. Interessante imaginar o quanto é surpreendente deparar-se com o que nos causa aversão sendo retratado pelo que normalmente nos causa admiração, seria uma inversão de papéis. O poeta do escárnio, do deboche, do vício e da maldade. Tais temas assustam aos leitores, normalmente são utilizados para retratar aquilo a que se deve abominar, no entanto, Augusto dos Anjos, Baudelaire e alguns outros têm estes adjetivos como parte inerente aos a própria personalidade.

Psicologia de um Vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a espigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos pra roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

(Augusto dos Anjos, EU e Outros poemas)

   Tento imaginar o que existe de fascinante nesse olhar macabro, mas não preciso ir muito longe em minhas fantasias, penso no Recife, na beleza fotográfica da Rua da Aurora, lembro de imediato do odor da Rua 7 de setembro com seu esgoto a céu aberto, lembro do lixo no mercado de São José. O belo e o repulsivo coexistindo dentro do mesmo ser. O amor e o ódio pregados pelos religiosos, a liberdade e a depravação pregadas pelo homem moderno. Nosso país que tem como um dos maiores representantes da história da independência D. Pedro I, um imperador.  Um autêntico monarca. O representante da família real portuguesa foi o ícone da transformação em nosso país, mas anos depois morreria castigado pela sífilis e outras doenças sexuais que adquiriu com as prostitutas dos bordeis mais sujos que freqüentava.
   Quando transferimos tudo isso para uma autocrítica é que fica ainda mais complicado, mas imaginemos em silêncio. O que temos de mais repulsivo? Até onde conseguimos ser sempre honestos com nossa consciência? O quanto trocamos nossas opiniões por outros bens? Cada um deve ter suas respostas. Importante mesmo é que foi através de um poema que surgiu todo o questionamento.

“Até a Monalisa está caindo aos pedaços” (Tyler Durden – Fight Club) 

Da nossa forma

Os carros seguem o tráfego,
Por cima dos ombros
As pessoas olham com desdém.
Deitada no asfalto quente
Está a poesia,
Ainda sangra,
Com tudo de mais visceral exposto,
Em estado de pânico.
Com seu corpo já imobilizado
Aguarda o socorro.

Logo após,
Já despida,
É amputada, costurada, colada
E nunca mais será a mesma.
Agora, tem problemas de dicção,
Agora, já não é tão livre quanto antes.

E assombrado penso comigo
Por que tanta gente cultua hoje,
Uma poesia cheia de seqüelas?
Com o tempo o poema vai acontecendo,
Mas cada vez mais
Apenas por acidente.